Mas o fato é: eu já havia morrido muito antes do meu corpo.
Gostaria, mas não tenho como listar aqui todos os motivos, em ordem cronológica, que me levaram a disparar aquela arma.
Poderia começar pela infância, ironicamente feliz. Poderia falar de uma adolescência regada à discriminação, fuga, rejeição e revolta — ainda que cheia de descobertas felizes e libertação através das mais diversas formas de arte. Poderia, também, citar alguns dos tombos que levei já na fase "adulta", mas o fato é que não foram os acontecimentos que me levaram a estar, agora, deitada no chão do banheiro.
Foram as sequelas, as feridas invisíveis e as lembranças anticoagulantes. São infinitas as minhas cicatrizes, mas são inúmeros os ferimentos que ainda ardem. Não há merthiolate ou band-aid que faça sarar. Não tem beijinho de mãe ou remédio de vó pra curar. Não há tempo suficiente para cura. Não nesta vida.
(...)
Levantei cedo naquela manhã. O sono ultimamente não tem sido muito companheiro, então ficar sem dormir tem sido tarefa fácil. Me despi lentamente, joguei o pijama na cama e fui em direção ao chuveiro. Nunca gostei de banho muito quente, mas naquele dia coloquei no modo "inverno" e deixei que a água me queimasse a pele. Me vi avermelhando debaixo d'água e foi como ver minha pele descendo pelo ralo. Misteriosamente, não doeu.
Fiquei alguns bons minutos ali, sem me preocupar com a conta de água ou energia que chegariam no fim do mês. Desliguei o chuveiro e, ainda molhada, parei na frente do espelho, tão embaçado quanto minha visão. Abri a última gaveta do gabinete e lá estava ela. Minha entrada para a libertação. Pronta para uso. Engatilhada e carregada.
Observei meu reflexo por alguns minutos, enquanto sentia um constante gosto de sal se espalhando pelos meus lábios e pingando em meu peito. Já não incomodava mais. Me acostumara a senti-lo diariamente. Minha pele, ainda vermelha, refletia tudo que queimava do lado de dentro e só restava uma forma de alívio. Só havia uma solução para todo ardor.
Não quis fechar os olhos. Precisava assistir a cena, até o fim. Precisava me ver caindo. Enfim, puxei o gatilho e observei atenta aos destroços do meu reflexo marcando o azulejo e se espalhando pelo chão. Vi meus olhos se tornarem reflexo do teto branco, vi meu corpo refletir o sol que entrava pela pequena janela ao lado do chuveiro e vi minhas pernas refletindo a pia encharcada. Vi minhas mãos espalhadas pelo chão. E — ironicamente — sorri. Enfim, liberdade.
Naquela manhã eu matei o meu espelho, assassinei meu reflexo e decidi que só voltaria a encará-lo no dia em que fosse capaz de me reconhecer. Desviei os pés dos pedaços de mim, voltei ao quarto, escolhi um vestido de flor e saí dando bom dia para a primavera.
— Vou ao psicólogo hoje. E nós precisamos de um espelho novo pro banheiro. — disse, na mensagem enviada ao contato que carrega o nome de "amor".
Eu puxei o gatilho, mas o que eu matei foi a imagem distorcida que nada lembrava a mulher forte que me tornei. O que eu matei foi a fraqueza e a falta de coragem de buscar ajuda, quando ela está tão perto e acessível. Matei todos os julgamentos que eu carregava e que berravam "você não precisa de ajuda, precisa de vergonha na cara".
De vez em quando precisamos nos enxergar aos pedaços, para, enfim, podermos nos refazer.
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GISELLE F..
É uma pernambucana por nascimento e paulista por consequência da vida. Escritora, blogueira e brinca de ser poeta de vez em quando. É a típica mulher-eternamente-menina que, apesar de ter cicatrizes profundas, nunca deixou que seu medo lhe impedisse de se aventurar mais uma vez. Quando sente demais, transborda em palavras.